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APRESENTAÇÃO

            A imagem fotográfica que originou o cartaz temático da divulgação do XIV Congresso Linguagens e Identidades Amazônicas – LIA – foi tirada no dia 21 de julho de 2020, no terreiro de certa localidade amazônica. Imagem emblemática porque nos faz pensar sobre o que estamos vivendo e a necessidade de levantarmos a voz e nos movimentarmos frente ao caos dos tempos atuais e a tudo o que, de múltiplas formas, atinge, agride, insulta e cerceia a vida, os seres vivos – e os mortos.

             No primeiro plano da imagem, um varal. Pendurados no varal, um jaleco e duas máscaras: simbologia da saúde pública fragilizada pelo vírus da hipocrisia do desgoverno, do autoritarismo, da indiferença, da xenofobia, do racismo, da incompetência que mata e silencia a vida, que banaliza a morte e desrespeita os mortos. No segundo plano, feito um poema que desafia os códigos estúpidos e a grotesca despolitização dos “homens de poder”, brota da terra um feixe de espadas de Iansã, “mãe e senhora dos ventos e das tempestades”, nos convocando ao levante, à ruptura, ao combate contra tudo o que tenta nos aniquilar.

           Em um de seus escritos, Eugénia Vilela afirma que a “dor é opaca e indivisível” e nos convida a pensar o impensável, a dizer o indizível, a possibilitar o impossível, a tornar visível o invisível, a nominar o inominável que se apresenta na forma da “dor concreta do corpo em sofrimento”, a dor física (simbólica, psicológica, ambiental) inscrita em corpos de mulheres, crianças e homens hierarquizados como seres inferiores, descartáveis, inumanos, deslocados para não-lugares: eternos convidados ao desaparecimento, sem direito, sem história, sem memória ou sem cotidianos, mesmo que magros.

           Neste crucial ano de 2020, acompanhamos estupefatos não uma mera crise sanitária e econômica, mas uma devastadora crise ambiental provocada pela nefasta lógica do desenvolvimento e do progresso a qualquer custo, em profundo desrespeito à vida, mercantilizada de forma insana pelos grandes conglomerados do capital internacional. E ainda outra crise, a de legitimidade de governantes autoritários, incompetentes e servis às suas absurdas fantasias de poder. Um poder frágil e oco, sustentado por enganosas campanhas de notícias falsas e robotizadas.    

            No interior de tudo isso, ecoa a nota aguda da xenofobia e do racismo que estrutura sociedades ocidentalizadas e se expande pelo mundo, ampliando as violências físicas e psicológicas ou o frio assassinato de pessoas racializadas e socialmente descartáveis. Descarte racial e social que se deslocou dos campos de refugiados para as nacionalistas barreiras sanitárias e dessas para o interior dos hospitais onde as pessoas mais “velhas” passaram a ser escolhidas para desaparecer na cinzenta necropolítica dos que decidem quem morre e quem vive, quem tem e quem não tem prioridade ao tratamento de urgência, quem tem direito à vida e quem não tem esse direito. Aliás, o próprio direito à morte e aos rituais de despedida passaram a ser suprimidos de maneira assustadora e inacreditável.

             Em diferentes cidades brasileiras, o assassinato brutal ou as covardes agressões contra garotas e garotos negros, as filas de pessoas (indígenas e não-indígenas) à espera de uma vaga nos hospitais, os caminhões frigoríficos com corpos destinados às covas coletivas ou a criminosa campanha de desinformação e obscurantismo do governo federal passaram a ser o signo moribundo desses tempos sombrios.

              Signo esse que, em nível internacional, foi estampado de forma dramática na execução pública de George Floyd, levada e cabo por frios e indiferentes policiais brancos, comprimindo o pescoço e a garganta, asfixiando o corpo de um homem negro entre a calçada e o asfalto da rua, interditando sua respiração, sua existência, seu direito à humanidade. “Eu não consigo respirar”, disse Floyd aos policiais que o asfixiavam. Palavras semelhantes a essas foram escritas pela jovem vietnamita Pham Thi Tra My à sua família: “Estou morrendo, não consigo respirar. Desculpe, mãe”, foram suas últimas palavras, em mensagem enviada à sua mãe antes de morrer, asfixiada no baú de um caminhão de transportes com outros trinta e oito refugiados em território do Reino Unido, algo que, tragicamente, tem sido lugar comum nos dias atuais, atingindo centenas de outras pessoas de diferentes nacionalidades em solo europeu.

               Vivemos tempos de interdição no qual somos invadidos pela cultura do medo e pela banalização da morte em meio à pandemia de coronavírus, massificada por inúmeros meios de comunicação na forma de cifras e mais cifras, em macabra contabilidade de corpos mortos ou doentes. Macabra contabilidade maquiada e difundida vinte e quatro horas diárias por notícias que não buscam informar, mas ocultar outros interesses.

                Os desaparecimentos de que temos sido testemunhas é algo inacreditável: assistimos pela televisão milhares de mulheres, homens e crianças tendo suas vidas suprimidas. Supressão envolta em uma retórica de banalização da morte, uma estética da morte banal ou do não direito à morte digna, ao ritual de despedida, um dos aspectos mais desumanos de tudo isso. Como parte dessa mesma retórica, a solidariedade é substituída por campanhas publicitárias de grandes indústrias e bancos, a rigor, uma não-solidariedade, uma farsa que, entre outras questões, serve para desqualificar as lutas das famílias dos mortos ou desaparecidos que foram atingidos pelos recentes crimes ambientais de empresas mineradoras como a Companhia Vale do Rio Doce, que aparece na grande mídia sob o simulacro de uma empresa que promove solidariedade e empatia com os que sofrem. 

                 Neste mês de julho, oficialmente, o Brasil contabiliza mais de oitenta e seis mil pessoas mortas e, aproximadamente, dois milhões e meio de infectadas, enquanto no Ministério da Saúde tudo é provisório, refletindo o descaso do governo brasileiro para com a população mais pobre, com os profissionais da saúde e com a saúde pública de um modo em geral. Algo assustador, especialmente, quando nos damos conta de que esses são números oficiais, ou seja, se levarmos em consideração a falta de testes e a maquiagem das informações e o ocultamento ou sumiço dos mortos, as irreparáveis perdas de mulheres, crianças e homens se eleva a um quantitativo muito maior e de impossíveis dimensões. A situação se agrava em relação às populações indígenas que vivem em cidades e florestas amazônicas.

                 Não podemos deixar de assinalar que tudo isso reflete algo que já está em curso desde muito tempo em nosso país. Nas áreas urbanas, anualmente, a polícia mata um grande número de pessoas pretas e pobres em gritante violência dissimulada por narrativas e montagens de cenários com armas, drogas e algumas cédulas de dinheiro, que são plantados para justificar autodefesa, inventar cenas de tiroteios, balas perdidas, justificar o injustificável. Nas áreas de campos e florestas a situação não é diferente. Recentemente, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresentou os dados da violência no campo na última década, indicando a asfixia histórica que está presente no cotidiano de inúmeras famílias. Apenas para termos uma ideia, conforme os números apresentados, entre os anos 2010 e 2019, ocorreram quase quatorze mil conflitos no campo, deixando um rastro de, aproximadamente, duas mil pessoas executadas: somente no ano 2019 foram trinta e dois assassinatos, dentre os quais, nove eram lideranças indígenas.

                   Na área da saúde, a pandemia de coronavírus tornou evidente o quanto a privatização desse serviço é uma farsa, pois, apesar da política de desmonte do SUS no Brasil (com os cortes de verbas, a não contratação de médicos para os atendimentos à saúde básica da população, a falta de acesso a tratamentos mais caros para a população pobre e a chaga da corrupção e do desvio dos recursos destinados à área da saúde), ficou evidente que esse Sistema Único de Saúde é melhor e mais eficaz que a saúde privada norte-americana.

                    Na educação a situação não é diferente e os constantes cortes e contingenciamentos de verbas refletem a clara intenção não apenas de fragilizar a escola ou a universidade pública e gratuita, mas ampliar os espaços para o ensino privado, principalmente, nesse contexto de isolamento social onde o modelo de educação à distância e, mais recentemente, o engodo do ensino remoto emergencial sinalizam que está na ordem do dia a normalização das aulas sem classe e o esvaziamento da pesquisa e da educação pública de qualidade e socialmente comprometida.

                     É nesse contexto que somos chamados a realizar o XIV Congresso Linguagens e Identidades Amazônicas, com a esperança de que possamos ampliar nossos esforços de superação de tudo isso, aprofundando a reflexão crítica e criando mais um espaço de resistência político-acadêmica e de mobilização de nossas energias para as lutas dos tempos presentes, dos mundos presentes para que, como disse o poeta, as “pragas e as ervas daninhas,
as armas e os homens de mal” desapareçam “nas cinzas de um carnaval”.

 

Rio Branco, Acre, 25 de julho de 2020.

A Comissão de Organização

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