Apresentação
Como se a vida não fosse feita de instantes presentes, nos exercitamos nesta escrita/convocatória para dizer de centenários, ou seja, para flutuar nas bordas das generalizantes celebrações, tendo por referência uma seleção de data alusivas a idealizações urdidas nos limiares do visibilizar/invisibilizar mundos/seres, gentes/línguas, naturezas/culturas: 2022 ↔ 1922 ↔ 1822 ↔ 1722 ↔ 1622 ↔ 1522.
Em cinco séculos, simbolizados nas datas em destaque, a violência aguda se metamorfoseia inerente ao secular estágio colonizatório da terra nomeada/renomeada de Vera Cruz, dos Papagaios, Santa Cruz, Pau-Brasil, Brasil, sempre em conformidade com a escrita fundacional, apagando as inúmeras definições presentes nas centenas de linguagens das gentes que aí viviam/vivem.
Dentre os modernosos sintomas desse estágio colonizatório estão a exploração madeireira, as queimadas, as barragens e todo o tipo de avanço predatório sobre imensas áreas de florestas e rios, expulsando ou eliminando comunidades humanas e destruindo os biomas e as vidas de milhares de seres; a exploração mineral, os latifúndios destinados à produção de commodities [leia-se pilhagem] com base na expropriação de centenas de pessoas e na degradação ambiental, dissimulada por bizarras peças publicitárias do tipo “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”; a implantação de vilas e cidades como ponto de apoio para a mercantilização de tudo ou para a exibição do privilégio de poucos e o descarte de milhares em depósitos urbanos sem urbanização.
Nada é mais afinado com a lógica de tal estágio colonizatório do que a infundada querela do marco temporal, espelho de séculos de genocídio, glotocídio e silenciamento de povos e línguas indígenas, justificando a devassa e invasão de seus territórios ancestrais.
Nesses cinco séculos de crônico estágio colonizatório, o estado brasileiro [colonial/monárquico/republicano] continua não apenas cumprindo o papel subalterno dos projetos e impérios globais, mas, promovendo um verdadeiro holocausto contra pessoas indígenas, pessoas pretas ou pessoas pobres de todas as cores e credos, racializadas para serem descartadas como parte do destino de suas sub-humanidades em uma fascista hierarquia dos corpos. Nesses descartes, ora o Estado age diretamente, ancorado em manipulado aparato jurídico para tentar justificar o uso da força bruta e suas armas letais, as “balas perdidas” ou as operações de chacinas em presídios e camburões asfixiantes; ora age indiretamente, quando não há espaço para a retórica rasa da legalidade. Nesses contextos, a exemplo do que ocorreu com Marielle Franco e Anderson Gomes, em 2018, ou com Bruno Pereira e Dom Phillips, em 2022, entra em cena o lixo produzido em séculos de genocídio estatal: milicianos, jagunços, pistoleiros de aluguel e toda a sorte de covardes, pagos para fazer desaparecer as vozes contrárias, os corpos daqueles que se colocam no meio do caminho da destruição da vida e da injustiça. Essa prática nefasta, muitas vezes chamada de “limpeza”, nem sempre é feita às escondidas, mas é especializada em ocultar os nomes dos mandantes, mantendo a impunidade e o cinismo institucional.
Um descarte de tal modo naturalizado, normalizado, que, na maioria das vezes, à exceção dos familiares das pessoas diretamente atingidas e suas amigas e amigos mais próximos, ninguém se importa. As instituições públicas não se importam, as escolas e universidades não se importam, as igrejas não se importam, a maior parte das mulheres e homens de ciência ou do mundo intelectual não se importa, a quase totalidade das organizações sociais, associações de classe, sindicatos, entre outros também não se importa.
Não se importam porque “é assim mesmo”, “é a vida”. Afinal, “a notícia não para” e, parafraseando o filósofo e poeta Édouard Glissant (O pensamento do tremor, 2014), os mortos de hoje invisibilizam os mortos de ontem, os assassinados de hoje ocultam os assassinados de ontem. Tudo é estandardizado na uniformização do reino da notícia globalizada, a “globalidade tranquilizante”, que a todos transforma em passivos consumidores de notícias sensacionais, normalizando a mercantilização da vida e da morte, a banalização da morte e da vida. É como se a expropriação de milhares de famílias de indígenas e não indígenas para abrir espaço ao insaciável latifúndio do gado, do milho, da soja ou outras monoculturas fosse produto da própria natureza; é como se fosse natural a invasão dos territórios tradicionais de distintos povos ou das áreas de proteção ambiental; é como se brotasse da terra a exploração ilegal de madeira, a pesca predatória, as barragens, a grilagem de terras nas florestas/campos e cidades, os incêndios florestais, o garimpo, a abertura e a pavimentação de estradas em áreas protegidas, o tráfico de armas e de todo tipo de droga, a contaminação dos rios e lagos, as represas, os agrotóxicos e o envenenamento da água, do ar e da terra; é como se caíssem das nuvens os milhares de sem-terra e sem-teto ou incontáveis famílias nas beiras das rodovias, amargando a indiferença, aliada da exclusão, e lutando todos os dias para ter direitos à vida; é como se germinasse do solo os assassinatos, as chacinas, a misoginia, a homofobia, o feminicídio, a fome, a morte prematura de crianças e jovens nas cidades e florestas/campos ou o genocídio de pessoas pretas e indígenas em todo o país.
Com base na crença de que é urgente e preciso nos posicionarmos sobre essas questões, para não sermos atropelados pelo alegórico carro da história, lançamos esta convocatória ao XV Congresso Linguagens e Identidades Amazônicas – LIA, pautado pelo tema geral: EmDependênciasSeculares. Tema esse que espelha não apenas uma tomada de partido, mas um convite para quem deseja (com)partilhar reflexões e posições a contrapelo da conivente e cínica onda de celebrações em torno do mito de fundação do autoritário estado nacional brasileiro.
Realização:
Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade (PPGLI/UFAC)
Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino de História (PPGPEH/UFAC) - Rede Nacional
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/Unifap)
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFAM)
Apoio:
Anpuh – Acre
Grupo de Pesquisa História e Cultura, Linguagem, Identidade e Memória – GPHCLIM/UFAC
Rede de Intercâmbio e Cooperação Acadêmica nas Amazônias | Programas de Pós-Graduação em Linguística e Literatura
Laboratório de Interculturalidade - LABINTER/UFAC
Laboratório de Digitalização, Recuperação e Reprodução de Fontes Documentais – CEPRODOC
Centro de Idiomas da UFAC