APRESENTAÇÃO
Nossas línguas são produtos de nossas existências e de nossas sociabilidades, e nascem incrustradas nas paisagens existenciais, afetivas, sonoras de nossos cotidianos. Elas singram nos mundos fluidos de nossos rios e nas terras instáveis, férteis e cheias de vidas de nossas várzeas; rios que são cultura/natureza, que são sonhados/tecidos por nossos muitos modos de narrar, de produzir os espaços em que são produzidas nossas línguas que, ao serem criadas, criam as curvas, as margens, as praias, os contornos e os entornos de nossas passagens fluviais e interfluviais.
Nossas línguas assoviam com os ventos que sopram em nossos morros e barrancos, em nossas planícies e terras altas, nos labirintos infindáveis de nossas cidades-florestas/florestas-cidades. Nossas línguas ganham tonalidades múltiplas nos entrechoques dos raios solares e das gotas de chuva que demarcam nossos afazeres em diferentes estações do ano e, nas noites de nossos dias, cintilam em miríades de astros que movimentam nossos olhares, nossos sonhos, nossas esperanças em novos amanheceres, em novas manhãs.
Nossas línguas ecoam no encantamento das muitas sonoridades de nossas crianças, de nossas aves, de nossas florestas. Nossas línguas transitam nos espaços/tempos diversos/adversos de nossos sendos incontáveis, de nossas paixões, de nossos credos, de nossos afetos, de nossos viveres. Nossas línguas se entrecruzam, se chocam, se movimentam, se friccionam todos os dias na estável instabilidade de nossas materialidades físicas, psíquicas, ambientais e cósmicas. Nossas línguas são produtos de nossas cosmogonias, assim como nossas existências são dependentes de nossos cantares/contares nos devires que atravessamos e que nos atravessam
Édouard Glissant, poeta, filósofo e ensaísta martinicano, disse certa vez que somos praticantes da oralidade ou da fala e não da escrita e que escrevemos na presença de todas as línguas do mundo, mesmo quando não conhecemos uma só palavra de outras línguas. E acrescentou que escrever na presença de todas as línguas do mundo não significa conhecer todas as línguas do mundo, mas que no atual contexto de múltiplos intercâmbios, de múltiplas trocas e de múltiplas conexões, nesse verdadeiro caos de misturas em que vivemos, não é mais possível ser monolíngue. E não ser monolíngue implica em reverberar, deportar e desarrumar a própria língua na constância/inconstância das misturas que somos; não ser monolíngue tem relação com aberturas linguísticas que permitam estabelecer relações das línguas entre si, relações terrenas, relações na carnalidade das experiências seculares, relações de dominação/resistência, relações de conivência/convivência, relações de abertura/erosão, relações que permitam o toque, a fricção, o caminhar lado a lado, o misturar-se sem receios de se perder, de se deixar tocar pelas diferenças. Enfim, relações que permitam saber que a sobrevivência de uma língua depende da sobrevivência de todas as demais; relações que reafirmem o viver, falar, gesticular, escrever na presença de todas as línguas. Mais que isso, em nossas contemporaneidades as pessoas surdas e as pessoas ouvintes vêm nos mostrando que as oralidades e os sinalizares se interconectam e possibilitam colocarmos em evidência que a escrita, embora também variável, sempre foi uma tentativa de unificar o que se apresenta de maneira múltipla e mesmo inalcançável pelas formas de simbolização.
Em nossas Amazônias, aqui entendidas como as diversas localidades desde onde conversamos, desde onde partimos, sonhamos, falamos, sinalizamos e escrevemos no – e com o – mundo, nossas palavras faladas/sinalizadas/escritas são atravessadas por línguas indígenas, africanas, afroindígenas, europeias e por línguas de sinais. Nosso português/brasileiro é contaminado, pois resulta de uma língua que foi se transformando historicamente, recebendo sonoridades outras, tonalidades outras, variações outras. Sons, tons e variações que enriqueceram o português do ponto de vista linguístico, traduzindo outras culturas, outras paisagens, como disse Mia Couto para enfatizar que as mudanças experimentadas pela língua portuguesa vão muito além dessa própria língua, posto que resultam de intercâmbios, de trocas e de misturas culturais que fizeram a língua da colonização perder seu suposto dono porque “namorou no chão, namorou na poeira do Brasil, namorou na poeira de Moçambique... Sujou-se, no sentido conferido por Manuel de Barros, sujou-se no sentido em que é capaz de casar com o chão”. Não por acaso, na imprevisibilidade de nossas historicidades, de nossos encontros/desencontros brotaram um Português Afro-Brasileiro, um Português Guarani, um Português Shanenawa, um Português Huni Kuin, um Português Madija, um Português Xavante, um Português Yanomami, um Português Terena, um Português Macuxi, um Português Sateré-Mawé, um Português Kaingang, um Português Ticuna, um Português Guajajara, um Português Nheengatu e tantas outras e outros possíveis sendos.
Ao dialogar com essas (pro)posições no marco do XVI LIA, com nossas línguas pensadas como paisagens existenciais, afetivas e sonoras, nossa perspectiva caminha na contramão do mundo das instituições de poder e de saber que interditam crianças, mulheres e homens com a imposição de uma língua padrão, uma língua silenciadora das outras línguas que nos atravessam cotidianamente. Uma língua padrão que ecoa o histórico de colonização de nossos imaginários, de nossos corpos, de nossas subjetividades como forma e meio de estabelecer certa inferioridade social, pois a língua hegemônica, a língua padrão, sempre foi utilizada como um eficaz instrumento de dominação, de prestígio e de exclusão social. No âmago tenso, contraditório, inquieto dessa percepção, propomos caminhar na contramão, seguindo a trilha poética de Manoel de Barros, pois caminhar na contramão implica em sonhar outros sonhos para as palavras, sonhos que libertem as palavras da cápsula do significado, sonhos que desencaminhem as palavras, sonhos que permitam ouvir o silêncio das pedras e o gorjeio das palavras, sonhos em que as palavras se impacientem e transitem desacostumadas à margem dos sentidos. Sonhar outros sonhos para as palavras tem a ver com errar a língua, desobedecer a linguagem, falar uma língua das coisas e das larvas, uma língua das manhãs e das manhas, das florestas e dos rios, dos humanos e dos outros-que-humanos, das crianças e da poesia na forma de sons e de todos os modos de expressão.
Sonhar outros sonhos para as palavras implica em abrir espaço para a vocalidade, para o ritmo, para a sonoridade, para a musicalidade, para as performances do corpo, para todos os sons que antecedem o semântico e desafiam seu rígido esquema referente/significante/significado.
Algumas referências
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução de Flavio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: EDUFMG, 2011.
CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; VELDEN, Felipe Vander; ROCHA, Hélio Rodrigues da. Humanos e outros-que-humanos nas narrativas amazônicas: perspectivas literárias e antropológicas sobre saberes ecológicos, tradicionais, estéticos e críticos. São Carlos: Editora De Castro, 2023.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.
GLISSANT, Édouard. O pensamento do tremor – La cohée du Lamentin. Tradução de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard/Editora da UFJF, 2014.
LOPES, Victor (Dir.). Filme Documentário – Língua - Vidas em Português. Brasil/Portugal, 2004, 105 min.
MANOEL DE BARROS. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013.
SKLIAR. Carlos. Desobedecer a linguagem: educar. Tradução de Giane Lessa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.